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predestinados, os quaes ainda que sejam peccadores, se podem chamar peccadores do ceu, assim como aquelles se chamam peccadores da terra: Bibent omnes peccatores terræ. Donde tambem se infere, que a mão que ficou com o calix das fezes, era a esquerda de Deus, que é a mão dos precitos; e a que tinha o outro calix, a que se passou o inferno limpo, era a direita, que é a mão dos predestinados.

E para que ninguem duvide da probabilidade gostosa destas consequencias, oiçamos outra vez a David, e seja elle o expositor e interprete de si mesmo. No psalmo setenta e dois, conforme o texto chaldaico, fallando David das blasphemias do inferno diz assim: Posuerunt in cælum os suum, et lingua eorum ussit sanctos terræ. Puzeram os condemnados a sua bocca no ceu, e a sua lingua impia e sacrilega queimou os santos da terra. A sentença é facil; o atado della não parece que havia de dizer: Puzeram a sua bocca no ceu, e a sua lingua queimou os santos do ceu ; mas puzeram a sua bocca no ceu, e a sua lingua queimou os santos da terra? Sim: porque as blasphemias do inferno, ainda que vão atiradas e fulminadas contra o ceu, não tocam, nem podem tocar aos santos do ceu, e muito menos ao Santo dos santos, que é Deus; tocam porém essas mesmas blasfemias, e queimam os santos da terra; porque como estes amam sobre tudo a Deus, e muito mais que a si mesmos, aquillo que mais temem e lhes faz maior horror na consideração do inferno, aquillo que mais os fere, penetra e queima o coração, não é o fogo do mesmo inferno, senão as injurias, opprobrios e maldições, com que por summa impiedade, e horrendos sacrilegos é alli blasphemado Deus. Bem; mas este mesmo conceito, esta mesma estimação, e esta mesma distincção de penas a penas, e de horror a horror, a póde fazer qualquer homem de alto juiso, ainda que não seja santo, temendo mais o inferno pelas blasphemias de Deus, que pelo fogo, e outros tormentos; como logo chama David santos a todos os que teem este nobre e verdadeiro sentimento: Et lingua eorum ussit sancios terræ? Porque como este é um grande signal, e como caracter certo de predestinação; e os predestinados, ainda que actualmente não sejam santos, hão de ser santos, justamente os

canonisa a todos David, e lhes dá o nome de santos já na terra: Et lingua eorum ussil sanctos terræ.

Combinae agora este sanctos terræ com aquelle peccatores terra; e reparti os dois calices do inferno puro e limpo, e não limpo aquelles que bebem o inferno, e lhes amarga pela parte das fezes, isto é, pelo fogo e tormentos, estes são os peccadores da terra, isto é os reprobos: Bibent omnes peccatores terræ: porém aquelles que o não podem tragar pela parte limpa, isto é pelo horror das blasphemias e injurias de Deus, estes são os santos da terra, isto é, os predestinados: Et lingua eorum ussit sanctos

terræ.

E se algum me perguntar a razão desta differença, eu lh’a darei, e a confirmarei com effeito. A razão é, porque quem teme o inferno pelas penas do fogo, teme-o por amor de si; quem teme o inferno pelas injurias de Deus, teme-o por amor de Deus; e quem teme o inferno não por amor de Deus, senão por amor de si, vá para o inferno: porém quem teme o inferno, não por amor de si, senão por amor de Deus, não o póde Deus lançar no inferno. Esperava á porta do templo o summo sacerdote Eli o successo da batalha, em que naquella occasião se combatiam israelitas e philisteus, quando chegou a triste nova com tres circumstancias terriveis. A primeira, que o exercito de Israel era roto e perdido; a segunda, que os dois filhos do mesmo Eli, Ophini e Phinees, ambos ficavam mortos; e até aqui esteve elle animoso e constante, sem se turbar um ponto; a terceira, finalmente, que tambem a arca de Deus fora tomada, e estava captiva em poder dos inimigos; e em ouvindo isto Eli, caiu desmaiado, e subitamente espirou Cumque ille nominasset arcam Dei, cecidit de sella retrorsum, et mortuus est. (Reg. IV—13) Tal foi a improvisa morte daquelle pontifice; e porque na sua vida nota a escriptura alguns defeitos não leves a respeito do governo ecclesiastico, disputam os interpretes, se se salvou, ou não. Muitos teem para si que se condemnou, e fundam o seu parecer nas culpas do mesmo Eli, verdadeiramente graves; porém S. Jeronymo, S. Gregorio Magno, S. Chrysostomo e Ruperto, Carthusiano, Caetano, Abulense, e outros, defendem que se salvou Eli, ainda que com

metteu aquelles peccados: e porque? Pelo que succedeu na sua morte. Não vêdes, dizem, que sabendo Eli a perda do exercito e morte de seus filhos, não se turbou; e em ouvindo o captiveiro da arca, foi tão excessiva a sua dor, que caiu morto? Pois homem que sente mais a injuria de Deus, que os dois maiores golpes da natureza, não podia Deus deixar de salval-o: Qui ergo sine arca Dei vivere non poterat, quomodo sine Deo ipsius arcæ moreretur? Assim conclue com os padres e doutores allegados o mais diligente commentador dos livros dos Reis. O mesmo digo eu no nosso caso. Quem teme de tal maneira o inferno, que lhe fazem maior horror as blasphemias e injurias de Deus, que todas as outras penas, que são tormentos proprios, não póde o mesmo Deus não o livrar do inferno: temer assim é acto de contrição do temor; e quem vive e morre assim contrito, não póde deixar de salvar-se.

Ouvida já a razão, ouvi agora o effeito. A promessa do ceu mais expressa, e mais canonica de quartas Christo fez a nenhum homem particular, foi aquella do Bom Ladrão, o qual em toda a sua vida tinha tão merecido o inferno, como o outro seu companheiro; ainda assim lhe diz Christo: Fodie mecum eris in paradiso: (Luc. XXIII-43) Hoje estaras commigo no paraiso. Pois a um ladrão, a um malfeitor, a um justiçado e enforcado por seus delictos, tão geral absolvição, tão plena indulgencia! Porque merecimentos? Doutissimamente, e com grande advertencia Origenes: Ad eum, qui increpaverat blasphemantem, dixit: Hodie mecum eris in paradiso". Se quereis intender a consequencia, reparae nas premissas. Que fez o bom Lobrão? Antes de dizer: Domine, memento mei, e antes de tractar da sua salvação, ouvindo que o companheiro blasphemava, voltou-se contra elle, defendendo a honra de Christo, e o fez callar: Unus ex his, qui pendebant, latronibus blasphemabat; respondens autem alter increpabat eum". E um homem, que posto em uma cruz e em meio de

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seus tormentos, e, o que é mais, em perigo de sua condemnação eterna, o que mais sente, o que mais lhe doe, e o que lhe faz maior horror, não são as penas que padece, nem as que póde padecer, senão o ouvir blasphemar de Deus; este homem é predestinado, este homem não se póde perder, e ainda que seja um grande peccador, alcançará sem duvida uma indulgencia plenaria: Ad eum, qui increpaverat blasphemantem, dixit: Hodie mecum eris in paradiso.

VII.

Istò, isto é, ó almas fieis, isto, é, ó espiritos heroicos e generosos, o que mais deveis sentir, e o que maior horror vos deve fazer em todo o inferno. Sintamos e temamos assim; e este mesmo sentimento e temor seja em nós uma firme esperança de nossa salvação. Firme, porque firmemente nos resolveremos a não offender a Deus nesta vida, pelo não blasphemar na outra ; e firme, porque este é o mais firme, e o mais forte escudo contra todas as tentações. Os padres antigos ensinaram por efficacissimo remedio contra as tentações, que todas as vezes que alguem se visse tentado, applicasse a mão, ou um dedo ao fogo, para que provando por experiencia que não podia soffrer um momento aquelle ardor, temesse a eternidade do fogo do inferno, e se abstivesse de peccar: bom conselho; mas eu não digo assim. Christãos, quando o demonio, o mundo, ou outro inimigo vos tentar, farei a vossos corações esta pergunta: Atreves-te, alma minha, a blasphemar eternamente da Santissima Trindade? A blasphemar do Pae, a blasphemar do Filho, a blasphemar do Espirito Santo? Atreves-te a blasphemar eternamente de Jesu e seu sangue, e de sua Santissima Mãe? Se te atreves, não temas o inferno: se te não atreves, teme o peccado.

DISCURSO QUINTO.

Elegit quinque limpidissimos lapides de torrente.1 Reg. XVII.、

I.

Resta já á funda de David uma só pedra; se esta não faz effeito, e emprega o tiro, ficará a cabeça do gigante tão vã e soberba como de antes; e assim o creio eu. A pedra verdadeiramente é de boa cor; não é esmeralda, mas verde. A primeira foi branca e transparente, qual a pedia o conhecimento de si mesmo: a segunda negra, pela dor do bem perdido: a terceira vermelha, da dor da vergonha: a quarta da cor do temor, pallida, ou amarella, e esta ultima, como dizia, verde, da cor da esperança : Spes æterni gaudii. A maior façanba que fizeram os argonautas da minha nação, foi descobrir o cabo de Boa Esperança; muito maior e muito mais difficil empreza é hoje, a minha; porque é de descobrir o cabo não da boa, nem da melhor esperança da terra, senão da mais limpa, da mais fina e da mais heroica do ceu e se foi demasiada a ousadia daquelles descobridores, em levar as ancoras do Tejo com tão novo e formidavel acommetimento, confesso que maior temeridade tem sido a minha, em ter navegado por mar para mim tão novo e tão estranho, até lançar a ancora da esperança no Tibre, e no logar aonde é mais alto e mais profundo. Esta confissão me servirá de desculpa: dae-me a ultima attenção.

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